terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Um dos nosso episodios

Escrevi :
" Passa aqui por casa antes de ires embora"

Recebi:
"não sei se posso. tenho de ir buscar a minha irmã"

Respondi:
"Passa aqui antes então"

Li:
"vais ficar aí? já vejo se dá"

Bateram à porta. Naquela altura a porta era de metal e vidro e se a abrisse via uma praia invernal. Era um dia cinzento, frio e de vez em quando caíram umas abençoadas pinguinhas. Eu tinha chegado a casa à relativamente pouco tempo. Desde que te tinha encontrado na estrada, desde que tinha tremido e "sarindando"pela cozinha na dúvida e no nervosismo de te convidar ou não. O tempo foi suficiente para tomar um duche quente para voltar a pôr o sangue a correr nas veias e para te receber em trajes mais despretenciosos e algo caseiros. Lembro-me de me ter desmedidamente preocupado com o blush, esse não podia de maneira alguma faltar, afinal era ele que iria disfarçar o meu corar nervoso.

Abri a porta, sem saber se as minhas pernas estavam ali ou não: não as sentia.

"Saiiii da frente! Que frriiiiiiooooooo"

Meu Deus, a tua voz ao vivo. Soube tão bem. Receava tanto este encontro. Há um mês que não nos falávamos, mal nos olhávamos e pouco nos sorriamos nos nossos 'desencontros', já que te 'encontrava' sempre a conduzir no sentido contrário. De frente, é certo, mas sempre em sentido contrário. Há um mês que o teu casaco ficou de castigo na bagageira do meu carro. Fazia um mês que a sua presença me incomodava e faziam alguns dias que o tinha retirado do carro, porque decidi enfrentar de vez mais um processo de luto (e estes soem-me sempre tão imensuravelmente) e recordar tudo que de teu me ocupava a memória. Desenterrei o casaco castigado no meu carro e este passou da masmorra para a minha cama onde podia dormir comigo, onde podia sentir o teu cheiro (ainda o sinto agora porque esta minha memoria olfactiva, damn it) onde podia arrancar cada memoria, chora-la e enterra-la por definitivo! Era este o caminho certo, e era isso que ia fazer.

Sem teres a menor noção, aquele casaco era tudo o que nos simbolizava. Também ele sujo, também ele sombrio. Nestas minhas psicoterapias e princípios ditadores que me imponho e todas estas metáforas e armadilhas a que me sujeito propositadamente e para meu próprio bem, depositei tudo de nós ali, naquele casaco, que era tudo o que me restava de ti... Decidi que o passo final seria devolve-lo, uma vez que nele estariam projectados todos os desejos suprimidos, todas as palavras malditas, todas as situações mal resolvidas, todo o meu carinho, todos os bons momentos... enfim, tudo! E devolve-lo seria livrar-me de tudo isso. Seria o fim!

Neste impasse, nesta fase estranha, nesta meta em que nós não trocávamos uma única palavra desde a nossa última discussão colossal ali estavamos e, dois sorrisos atrapalhados e atrevidos por sabermos bem o quão estranho aquilo era e por sabermos bem o quão estavamos a estranhar aquele encontro mutuamente, e "Saiiii da frente! Que frriiiiiiooooooo" era tudo o que , naquele imediato, se podia dizer.

Olhei para ti "entra, estúpido" foi o que consegui dizer ao ser desviada por ti para poderes entrar.

Fechei a porta, virei-me para ti e sorri (atrapalhadamente). Deste-me um abraço. Como se aquele abraço fossem as tréguas. Sim, preciso de perdoar e ser perdoada para seguir em frente, por isso esse abraço nunca foi esquecido.

A verdade????? Queres agora saber a verdade?????? A verdade é que te devolvi o casaco, reclamas-te dele estar com nódoas de groselha (foi mesmo a groselha que acompanhou a minha sessão alcoolatra na tentativa de te afogar e me libertar: ironia do destino ao máximo), eu pedi desculpas, sinceras desculpas, disse que isso saia, que era uma nódoa que muito facilmente sairia (e na verdade achava que não assim tão facilmente), insististe no teu desgosto quanto ao casaco, disseste que não sabias o que te doía mais: o facto de afinal não teres perdido o casaco como achavas até então, ou o facto do teres recuperado e ele estar possivelmente estragado. Ofereci-me para o lavar e me comprometer a tentar tirar a maldita nódoa a todo o custo. Recusaste. Mas fizeste a demanda: se a nódoa não sair, ofereces-me um casaco novo no Natal. Eu sorri e concordei.

A verdade???? A verdade é que a porcaria do casaco acabou por simbolizar muito mais do que imaginava. A nossa historia moribunda na bagageira do carro, a nossa historia manchava pela vida boémia e inconsequente, as tuas reclamações, a minha tentativa de remediar as nódoas, a tua recusa pelos remendos, a a demanda de uma nova história e a minha resignação.

No entanto a nódoa saiu, no entanto recebeste um casaco, no entanto a devolução encerrou a nossa historia. Pelo menos uma parte dela.

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Simplicidades